
O Ano Litúrgico e celebrativo da Igreja tem ritmos diferentes do ano civil e portanto um calendário próprio. Tem como centro o Mistério Pascal de Cristo que constituiu o núcleo celebrativo histórico das primeiras gerações de cristãos. A partir dali foram se estruturando outros tempos litúrgicos de acordo com as etapas e os fatos mais significativos da vida de Jesus descritos nos evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, acrescentando, ao longo da história da Igreja e a divulgação do evangelho em vários lugares geográficos, festas de Nossa Senhora e a memória de santos e mártires verdadeiras testemunhas de fidelidade a Jesus e ao evangelho.
Desta forma dentro do Ano litúrgico apareceram o tempo de Quaresma para preparar o povo de Deus à celebração da Páscoa do Senhor e à vinda do Espírito Santo em Pentecostes, o tempo de Natal, comemorando o nascimento de Jesus e o tempo do Advento para que os fiéis fizessem memória da sua primeira vinda na história e estejam prontos e preparados para a sua segunda vinda como Juiz nos fins dos tempos.
Acontece que, fora desses tempos “fortes” há espaços de tempo que poderíamos chamar ou considerar “vazios”. Assim a Igreja, que vive e caminha na história, bem sabe que Deus Criador e Pai acompanha e caminha sempre junto com o seu Povo, pois nEle “vivemos, nos movemos e existimos”(At 17,28), aos poucos ao longo dos anos, foi organizando um tempo litúrgico chamado TEMPO COMUM. Trata-se da vida cotidiana, do nosso dia a dia, onde Deus se manifesta não em fatos extraordinários, mas exatamente dentro da nossa história e vida normal, comum, a partir da oração do Pai nosso: “O pão nosso de cada dia, dai-nos hoje!”.
É como na vida de família onde são comemorados, aniversários, acontecimentos e datas importantes que reúnem a família em festas, alegrias e prantos, mas o normal da vida é feito de trabalho, compromissos, relacionamentos, lutas, perdas, dores, alegrias, conquistas entre tantos fatos. É neste “normal” da vida que se curte de verdade o espírito de família e se fortalecem os relacionamentos mais genuínos e profundos entre os seus membros. O dia a dia torna-se assim uma importante escola de vida.
Assim na Igreja, “além dos tempos que tem característica própria, restam no ciclo anual 33 ou 34 semanas nas quais não se celebra nenhum aspecto especial do mistério de Cristo; comemora-se nelas o próprio mistério de Cristo em suas plenitude, principalmente aos domingos. Este período é chamado Tempo Comum” (Missal Romano, Terceira Edição – Introdução nº 43 pag. 72).
Um dos tempos da vida de Jesus que nos ajuda a compreender e a vivenciar o tempo comum é o longo período (quase trinta anos! ) da sua permanência em Nazaré no total escondimento de uma vida “normal”. Lucas é o único evangelista que interrompe esse longo período de total silêncio para narrar o fato da peregrinação de Jesus com os seus pais em caravana para a cidade de Jerusalém, aos 12 anos de idade, para cumprir a lei da visita ao templo em ocasião da Páscoa (Lc 2,42-52). Desse tempo de total escondimento pouquíssimo se fala e menos ainda se explora a profundidade do sentido. Trata-se da mística do cotidiano vivida pelo Filho de Deus na obediência, mergulhado nos afetos humanos. Jesus aprende a gramática do ser humano, vivendo pobre no meio dos pobres, gestando a Palavra, absorvendo a religiosidade familiar, cultivando a esperança de Israel, sinal da esperança das nações. Ele, na cotidianidade, se torna o lugar da revelação e da salvação com que Deus presenteia o seu povo. Nazaré é o tempo em que Jesus incuba a palavra para assumir nas fibras da sua humanidade a linguagem com que teria se comunicado com as pessoas. É o tempo em que Ele assumiu a capacidade de enxergar a boa notícia presente nas entranhas do mundo. Em Nazaré muito aprendeu a respeito do trabalho, das relações humanas, da dimensão religiosa. Dos pobres aprendeu a entrega a Deus e como dirigir-se a Ele com a confiança humilde e desarmada de uma criança nos braços do Pai.
Eis como Lucas descreve tudo isso!
“Desceu, então com eles para Nazaré e era-lhes submisso” (Lc 2,51)
Com estas palavras enxutas Lucas apresenta e resume a vida de Jesus desde os 12 anos até a sua manifestação no Batismo com aproximadamente 30 anos de idade. Poucas vezes pensamos que estamos diante de uma das mais intrigantes etapas da encarnação de Jesus. Parece um parêntesis na vida dele, um tempo vazio, sem significado, quase um tempo “perdido”. Na vida escondida em Nazaré, Jesus não pregou, nem apresentou seu perfil religioso ou a sua “original” identidade de Filho de Deus, mas viveu como irmão e “com-cidadão” entre os homens. A normalidade da vida, sobretudo para nós pessoas da pós-modernidade, gente acostumada a aparecer, a falar, a almejar protagonismos, a construir palanques, a exibir em público até os sentimentos mais íntimos para chamar atenção e a bater palmas ao palhaço de turno, a normalidade tem o sabor do enfado, da rotina, da perda ou da falta de oportunidades, enfim do perigo de ficarmos relegados ao anonimato. É um “escândalo” imaginar que o Filho de Deus se relacione no “anonimato” com seu coleguinhas de infância, com os adolescentes e jovens da sua idade, que aprenda a profissão de carpinteiro, que ganhe a vida com o suor de seu trabalho, que participe da vida social da sua aldeia: as festas, os ritos religiosos, os casamentos, os funerais, os acontecimentos da vida política, etc.
Em Nazaré, uma cidadezinha da mais longínqua periferia, terra abandonada e esquecida, visitada por salteadores e malandros, feita de gente simples, sacrificada, pobre e trabalhadora. Fosse uma capital, mas não, era a escória da sociedade chique da época, a tal ponto que Natanael convidado a encontrar-se com Jesus de Nazaré, exclamou: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1, 46).
Jesus “desceu com eles”, os pais. Desceu indica uma descida não somente geográfica, mas existencial, social, cultural. Falar de último lugar, de “abjeção” em relação à vida de Jesus em Nazaré, pode parecer um exagero, mas não é! No Credo nós afirmamos que Jesus “desceu do céu e se fez homem”, mas a descida contemplava os mais baixos degraus de escondimento onde o estritamente necessário para sobreviver já era considerado riqueza. Lá Jesus “crescia” fazendo-se, tornando-se homem, aprendendo tudo como qualquer ser humano e ao mesmo tempo sendo Filho do Altíssimo. Nazaré, portanto, não é um simples momento preparatório à vida pública e à missão, mas é a própria vida de Jesus. Não se trata de um prefácio, é a missão redentora em ato. Nazaré é o trabalho, a proximidade doméstica do Filho que se alimenta durante longos anos daquilo que importa ao Abbá Pai: “Não sabeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?”(Lc 2,49), dentro da normalidade do COTIDIANO.
“Era-lhes submisso”. Em Nazaré Jesus aprendeu a se alimentar da vontade do Pai (cfr. Jo 4, 34 e 6, 38) e, junto com ele, Maria e José no escondimento total, cultivavam o amor, conservando e meditando no coração o maior mistério da história na mística do cotidiano.
O Tempo Comum nos ajude a viver esta dimensão da vida de Jesus. Ele nosso Mestre e Senhor nos ensine o segredo da verdadeira evangelização.
+ Francisco Biasin, Administrador Apostólico de Corumbá